
chillout

Os sábios podem seguramente se recuperar de um fracasso. Entretanto, os tolos dificilmente se recuperam de um êxito. Se alguém quisesse fazer uma monografia sobre ego e os publicitários em cativeiro, seguramente começaria pela terceira semana de junho, no Palais do Festival de Cannes.
Não sei se por causa do excesso de gim-tônica ou por esse solzinho tão da Costa Azul, que nos bronzeia tão bem, ou pelo tapete vermelho ainda gasto por causa do atrito com o vestido de Nicole Kidman, segue-se acreditando realmente que esse trabalho é o único verdadeiramente relevante que acontece no mundo. Nós, os criativos, somos um pessoal bonito, inteligente e divertido. À noite, montamos uma megafesta na praia até cinco da manhã. Às 10 horas, recebemos Al Gore, Martin Sorrell, Coppola e Richard Bradford, que nos pedem uma audiência para falarmos pessoalmente sobre como podemos ajudá-los a mudar o mundo. É como a corda mitológica de Ulisses, que o conteve para não ir ao encontro das sereias. Eu recomendo que cada um de nós invente suas próprias cordas para vencer a perigosíssima terceira semana de junho, no Palais do Festival de Cannes. O meu remédio para isso é tomar uma dose do mesmo veneno. Cada vez que volto para casa, quase sem desfazer as malas, reviso minuciosamente o que pode acontecer no Palais, quando a publicidade se vai. Quem se senta em nossas cadeiras ainda quentes por termos olhado o short list por sete horas? O que acontece com esse cenário, as promotoras e o vigilante atento da portaria quando não estamos mais?
Você já fez isso alguma vez? Costuma ser revelador, mas neste ano parece realmente interessante porque somente 48 horas depois de irmos embora (eu percebi que a cerimônia de entrega havia sido um pouco corrida neste ano) chegavam as fascinantes premiações de uns senhores calvos e com aventais, encarregados do tratamento da água. Tratava-se de um simpósio sobre a água, que foi de 24 a 26 de junho, para ser mais exato. Sim, eles também devem ter seus Ouros, Pratas e Bronzes em forma de gotas, e um Grand Prix em vidro que deve ser muito bonito. Mais tarde, acontecem o Festival de Analistas de Sistemas, o dos Especialistas em Foguetórios, o dos Magos e os prêmios para os construtores desses edifícios gigantescos de beira-mar que, embora atrapalhem sua vista, querem repartir prêmios.
Logo depois tem o apaixonante Festival dos Odontologistas, que eu suponho que sejam mais rápidos do que nós nessa coisa de se darem Dentes de Ouros. Depois, dão espaço aos esquisitos que fazem jogos de videogame e se dignam a tomar uma no mesmo metro quadrado do Hotel Martinez onde você ficou. Consegue imaginar?
Chama atenção especial no mês de fevereiro um evento de monges shaolins que compartilham e debatem suas tradições milenares entre senhoras com seus cachorros do tamanho de uma tampinha de banheira. Eu adoraria ficar 15 minutos no júri deles, desde que não seja durante a exibição dos short lists.
Finalmente, entre o festival dos dançarinos de break (eu juro que existe mesmo!) e os prêmios de melhor imobiliária do mundo, acontece o Festival de Cinema. Um conselho oficial da comunidade de Cannes o definiu com uma honestidade brutal: “A estratégia de realizar congressos, festivais e eventos nesta cidade foi muito inteligente. Cannes tem uma grande infra-estrutura e, ao se fazer o festival de cinema no mesmo lugar, podemos fazer as pessoas que exercem profissões comuns e corriqueiras se sentirem mais importantes e glamurosas. É divertido ver, por exemplo, odontologistas saindo com seus prêmios e caminhando pela Croisete se sentindo, por um instante, como se fossem o George Clooney. Todo mundo queria receber um prêmio do Festival de Cannes, mas que não seja no concurso de pintores de cerca”. Essa é a magia desta cidade, e devemos aproveitar isso. Resta apenas descobrir em que lado da fama o conselho de Cannes nos colocou. Agora, para despedir-me até o próximo artigo, pergunto-me o porquê de todos os anos (sem fazer nenhum tipo de referência ao nosso festival, para não incomodar ninguém) os odontologistas apresentarem tratamentos de canais de pacientes que não existem só para conseguir um prêmio. Eles diriam: “Senhora, já sei que está doendo horrores e que não consegue dormir, mas se te chamarem ao festival diga que sou um dentista excelente?”
Os shaolins brasileiros, argentinos e espanhóis prejudicaram os outros shaolins de seus países simplesmente porque eles meditam em outros templos? Os dançarinos de break pagaram jantares e se reuniram meses antes para definir que, apesar de não ser tão vistoso, o passo do robô deve receber votos? Os magos têm repetido ano após ano os mesmos truques e voltaram a seus redutos dizendo que fizeram algo com uma cartola e uma pomba, já que isso sempre funciona? Os construtores abriram novas categorias, do tipo vasos sanitários com bidê e sem bidê? Não sei, mas espero que não. Porque se isso acontecer o mundo estará ficando muito louco.

